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domingo, 30 de novembro de 2014

Vidas errantes - conto

Era um dia igual aos outros. Outono. As folhas amarelas atapetavam o chão húmido da chuva do dia anterior e o céu apresentava laivos azul cinza numa promessa de aguaceiros. Presa à trela a cadela de raça puxava a dona ao longo do muro do jardim francês no centro da cidade. Proibida a entrada a cães. Vá-se lá saber a razão do letreiro afixado na entrada. Será que os cães vadios sabem ler?
 Uma voz feminina, de cristal, num sotaque brasileiro inconfundível soou vinda do interior do jardim:
- Vá trabalhar malandro! Isso é falta do que fazer! Você indo trabalhar isso te passa tudo.
A mulher que passeava a cadelita cinzenta de raça Schnauzer parou. A voz zangada prendeu-lhe a atenção. De trás do enorme coreto onde outrora tocaram bandas filarmónicas surgiu uma figura de mulher pequena, com ar moderno, jovem, ostentando uma longa cabeleira aos caracóis e uma pele morena que não deixava dúvidas sobre a sua origem africana. Caminhava lentamente na direcção de um bebedouro de água. Na mão uma rosa amarela. Circundando o pequeno jardim a mulher com a cadela pela trela, não conseguia tirar os olhos da frágil figura. Triste. Com o peso do mundo nos ombros. Parecia. No interior do jardim uma figura de homem acabado passava afastado uns metros. Coxeava e vociferava impropérios contra alguém. A mulher da cadela presa pela trela reconheceu-o. Um toxicodependente residente sempre na busca de moedas que algum velhote que apanhar sol ali naquele sítio interdito a cães, tenha a compaixão de lhe dar. Para comida justifica.
Mais uns passos e os olhos sempre atentos seguem a jovem que caminha em direcção às paredes de mármore do coreto. No rádio Gal Costa canta “Chuva de Prata”. A mulher encosta a rosa ao rosto, os braços ao mármore frio e chora. Chora. Toda ela encostada ao coreto com a rosa na mão e os braços a esconder o rosto.
Do outro lado do muro a mulher, parada, fica com lágrimas nos olhos. Que história de vida estará ali que carrega tanta solidão e sofrimento.  Uma história que veio do outro lado do oceano em busca de uma vida melhor. Uma vida que se cruza com outra, as duas com algum vazio por preencher.

A mulher com a cadela presa à trela afasta-se levando consigo aquele sentir triste de outra pessoa, desconhecida, mas que lhe recordaram outras vidas, vidas de emigrantes carregando saudades do país que deixaram.