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quinta-feira, 4 de dezembro de 2014

Música das estrelas - conto


Nas rugas adivinhava-se a imensa emotividade de Maria: fora uma vida inteira a viver em pleno e a sentir. Naquela noite ao ouvir os primeiros acordes do piano e a voz cristalina da solista os olhos de Maria encheram-se de lágrimas a transbordar de contentamento e prazer. À memória chegou-lhe as longas noites de inverno acompanhadas pelos gemidos dos nocturnos de Chopin e o firmamento estrelado que vislumbrava através da janela da sala enquanto ele tocava. A sua alma poética conseguia nesses momentos escutar a música das estrelas.
 Foi nesse estado de saudade e embalo poético, que um breve instante do passado se desenhou na sua memória: nublado, distante, mas tão vivo. A idade que tinha não sabia, só sabia que aquela música estava entranhada na sua pele até ao último acorde. Ouviu-se uma enorme onda de aplausos e ela rejubilou de alegria e orgulho. O seu filho tinha alcançado a glória naquela noite. O piano, a guitarra portuguesa – que quase chorava – e a fadista que entoou “ Povo que lavas no rio”, arrancam-lhe lágrimas de alegria e saudade. Saudade da meninice em que a mãe lhe dizia «o pai toca a música das estrelas Maria, vê como elas saltitam» e apontava para os pontinhos luzentes lá no firmamento, escuro como breu, através da vidraça da janela. Era uma saudade boa, sã.

E aquela música recordava-lhe outras musicas, tão diferentes, às vezes dançadas, outras só sorvidas em milhares de sítios, quando ainda era jovem: bares, salas de cinema, viagens, ruas. A música de quando era jovem e conheceu o homem que a acompanhou a vida toda, na dor, na alegria, mas também na partilha de ideias e pensamentos. Nos livros que leram, nas batalhas que travaram, na educação doa filhos. Aquela música era a sua alma, a alma de uma menina que cresceu a ouvir o piano dedilhado pelos dedos firmes do pai, homem sensível, e um muro de protecção. Imersa nos pensamentos nem reparou que o marido estava a observá-la, ali, a dois passos dela com um ar que era de amor e complacência. Já sabia que sempre que o filho tocava aquela música, viajava para a infância, não com tristeza, mas com uma nostalgia de quem já viveu mais de metade da vida e quer aproveitar todos os momentos que lhe restam. Avançou até ele – admirou-lhe as têmporas brancas – e de mãos dadas caminharam até ao palco para abraçarem o artista da guitarra portuguesa: o filho.  

terça-feira, 2 de dezembro de 2014

Moço de estrebaria - conto

Pintura de José Malhoa

Arre que é bruto! – Pensava Juvenal- acerca do seu tio António que o havia chamado aos berros lá do fundo do quintal; Juvenal era distraído, passava o tempo a pensar como havia de sair dali, tamanho era o seu sofrimento. Havia dez anos que seus pais tinham partido para o além (deus os tenha em descanso), e sinceramente estava farto dos berros do tio; até a Alzira lhe dizia:
-Vai-te embora homem! Tens bom corpo, habilidade, o que esperas deste traste que te explora vai para uma década?
Destarte, Juvenal foi pensando na coisa com algum cuidado, não fosse o velho desconfiar. Um dia sumia-se no mundo e ia ser feliz. Os seus pais não o tinham criado para ser criado de lavoura do marido da tia; estava decidido! Quando o velho lhe pagasse a jorna da semana, ia meter pernas a caminho lá para os lados da vila onde muito trabalho havia, segundo ouvira dizer ao Manel da Fonte que vivia amantizado com uma moçoila daquelas bandas. Estava agastado de tanto ouvir «acarreta palha para os cavalos Juvenal», «ajuda a tua tia com a lenha Juvenal», «dá de beber às ovelhas Juvenal» e, ir à vila beber uns copos com os amigos e namoriscar as moçoilas nada. Para bruto, bruto e meio. De hoje não passava. Meteu pernas direito a casa com a intenção de meter os seus pertences num saco de pano e virar costas a tudo. Moço de estrebaria era, moço de estrebaria não haveria de ser mais tempo. Antes ir para a guerra defender a França. 

Moço de estrebaria - conto

Pintura de José Malhoa

Arre que é bruto! – Pensava Juvenal- acerca do seu tio António que o havia chamado aos berros lá do fundo do quintal; Juvenal era distraído, passava o tempo a pensar como havia de sair dali, tamanho era o seu sofrimento. Havia dez anos que seus pais tinham partido para o além (deus os tenha em descanso), e sinceramente estava farto dos berros do tio; até a Alzira lhe dizia:
-Vai-te embora homem! Tens bom corpo, habilidade, o que esperas deste traste que te explora vai para uma década?
Destarte, Juvenal foi pensando na coisa com algum cuidado, não fosse o velho desconfiar. Um dia sumia-se no mundo e ia ser feliz. Os seus pais não o tinham criado para ser criado de lavoura do marido da tia; estava decidido! Quando o velho lhe pagasse a jorna da semana, ia meter pernas a caminho lá para os lados da vila onde muito trabalho havia, segundo ouvira dizer ao Manel da Fonte que vivia amantizado com uma moçoila daquelas bandas. Estava agastado de tanto ouvir «acarreta palha para os cavalos Juvenal», «ajuda a tua tia com a lenha Juvenal», «dá de beber às ovelhas Juvenal» e, ir à vila beber uns copos com os amigos e namoriscar as moçoilas nada. Para bruto, bruto e meio. De hoje não passava. Meteu pernas direito a casa com a intenção de meter os seus pertences num saco de pano e virar costas a tudo. Moço de estrebaria era, moço de estrebaria não haveria de ser mais tempo. Antes ir para a guerra defender a França. 

domingo, 30 de novembro de 2014

Vidas errantes - conto

Era um dia igual aos outros. Outono. As folhas amarelas atapetavam o chão húmido da chuva do dia anterior e o céu apresentava laivos azul cinza numa promessa de aguaceiros. Presa à trela a cadela de raça puxava a dona ao longo do muro do jardim francês no centro da cidade. Proibida a entrada a cães. Vá-se lá saber a razão do letreiro afixado na entrada. Será que os cães vadios sabem ler?
 Uma voz feminina, de cristal, num sotaque brasileiro inconfundível soou vinda do interior do jardim:
- Vá trabalhar malandro! Isso é falta do que fazer! Você indo trabalhar isso te passa tudo.
A mulher que passeava a cadelita cinzenta de raça Schnauzer parou. A voz zangada prendeu-lhe a atenção. De trás do enorme coreto onde outrora tocaram bandas filarmónicas surgiu uma figura de mulher pequena, com ar moderno, jovem, ostentando uma longa cabeleira aos caracóis e uma pele morena que não deixava dúvidas sobre a sua origem africana. Caminhava lentamente na direcção de um bebedouro de água. Na mão uma rosa amarela. Circundando o pequeno jardim a mulher com a cadela pela trela, não conseguia tirar os olhos da frágil figura. Triste. Com o peso do mundo nos ombros. Parecia. No interior do jardim uma figura de homem acabado passava afastado uns metros. Coxeava e vociferava impropérios contra alguém. A mulher da cadela presa pela trela reconheceu-o. Um toxicodependente residente sempre na busca de moedas que algum velhote que apanhar sol ali naquele sítio interdito a cães, tenha a compaixão de lhe dar. Para comida justifica.
Mais uns passos e os olhos sempre atentos seguem a jovem que caminha em direcção às paredes de mármore do coreto. No rádio Gal Costa canta “Chuva de Prata”. A mulher encosta a rosa ao rosto, os braços ao mármore frio e chora. Chora. Toda ela encostada ao coreto com a rosa na mão e os braços a esconder o rosto.
Do outro lado do muro a mulher, parada, fica com lágrimas nos olhos. Que história de vida estará ali que carrega tanta solidão e sofrimento.  Uma história que veio do outro lado do oceano em busca de uma vida melhor. Uma vida que se cruza com outra, as duas com algum vazio por preencher.

A mulher com a cadela presa à trela afasta-se levando consigo aquele sentir triste de outra pessoa, desconhecida, mas que lhe recordaram outras vidas, vidas de emigrantes carregando saudades do país que deixaram.