Excerto do livro
"Isabel
fez uma ligeira vénia com a cabeça e permaneceu sentada enquanto ele saia da
sala de refeições. Devia ter perto de um metro e oitenta – algo raro nos homens
alentejanos- e, o porte atlético de cavaleiro experiente. As calças castanhas
justas às pernas, enfiadas nas botas de montar e a casaca verde-escuro com
botões dourados, realçavam-lhe a cor dos olhos. Não sendo propriamente um homem
bonito era muito másculo. Mas, o que mais surpreendia Isabel era a forma como
este homem detentor de um título de nobreza tratava os seus serviçais. Todos os
criados gostavam dele, embora todos dissessem que não o queriam ver enfurecido,
não queriam ver o lado mau dele. Já tinha percebido que deviam confundi-lo com
o velho conde seu pai, esse sim, um ser humano irrascível, segundo a cozinheira
lhe contara.
Há
muito tempo que não montava. Quando vivia na casa do pai tinha uma égua só para
si. Que saudades de sentir o vento na cara e no cabelo quando galopava pela
planície! Subiu as escadas e procurou no velho baú a roupa de montar. O
desconhecimento acerca do convento era tal que imaginou que lá, pudesse
continuar a fazer as actividades habituais, por isso colocara no baú, quase
toda a roupa que possuía.
Vestiu-a
rapidamente e encaminhou-se para a estrebaria. Era nestas alturas que se sentia
livre. Esta roupa era bem mais confortável que as anquinhas e os espartilhos e
depois não havia nada que lhe agradasse mais que estar montada numa cela.
Com
cautela entrou no edifício escuro a cheirar a cavalo e, Inácio, um dos moços da
estrebaria apareceu na porta quando ouviu o som das botas na pedra do chão.
Tirou o chapéu em sinal de respeito e disse:
-
Menina Isabel em que posso servi-la? –os seus olhos riam-se sempre que a via.
Inácio
tinha sonhos molhados com Isabel desde que ela fora viver para o Solar de Santa
Maria.
- Há
algum cavalo que eu possa montar? Não o faço há muito anos e gostava de
experimentar de novo. –confessou.
- Oh diacho menina! Os cavalos do conde são
todos ariscos.- disse para lhe meter medo e fazer-se de valente.
– Olhe que eu sou um bom cavaleiro e já me
atiraram ao chão algumas vezes. – vangloriou-se.
- Que
tal o “Arisco”? – disse uma voz grave e ligeiramente rouca atrás de si.
Manuel
Afonso dera pela presença dela assim que entrou dentro da cavalariça. Cada vez
estava mais intrigado. Quem era esta rapariga? A madre superiora não lhe contou
toda a história dela quase de certeza. Por educação não queria perguntar, mas
algo lhe dizia que havia um segredo em torno dela.
Inácio
fez uma vénia com o chapéu de pele curtida e ficou mudo.
-
Estava eu a dizer que lhe podes preparar o Arisco.
Parece que a menina Isabel me vai acompanhar hoje.
Ficou
perplexa e sem saber que dizer. Não queria ir com ele. Queria ir sozinha e
andar livremente pelo campo.
-
Perdão…não era minha intenção…só queria experimentar… se ainda sei montar. – disse
aos solavancos e muito corada. – Não quero incomodar vossa senhoria.
- Nada
melhor que a minha companhia para testar as suas habilidades. No caso de falha
estarei lá para a apanhar.
Quanto
mais sério dizia as coisas, mais interessante ficava. Tudo nele transpirava
homem - roupa, cheiro, gestos, e sobretudo a voz muito máscula. Conhecia-lhe a
voz à distância. Era inconfundível.
Tinha
a resposta na ponta da língua mas refreou-se. Não era adequado responder-lhe na
presença de outras pessoas. Não queria ofendê-lo, mas o conde estava a começar
a jogar um jogo perigoso para uma mulher virgem e sem experiência. Estava a
adorar o pagode, mas sentia que a qualquer momento podia perder a sua
inocência. Ou estaria enganada e o homem era apenas mordaz?
Inácio
apareceu com os dois cavalos arreados pela mão e entregou-os nas mãos do conde,
pelas rédeas. Manuel Afonso puxou um dos cavalos para perto dela- o branco com
um porte majestoso – e ajudou-a a subir para a sela. Para seu espanto Isabel
pôs o pé no estribo e saltou escarranchou-se na sela como os homens. A saia
dela abria-se a meio como se fossem calças quando montava. Muito engenhoso. Nunca
vira semelhante coisa. Todas as mulheres que conhecia montavam sentadas de
lado. Não queria perder esse espectáculo por nada.
Olhou
para ela com admiração, mas não fez comentários. Essa centelha de espanto que
lhe passou pelo olhar não escapou a Isabel.
Pôs o
pé no estribo, saltou com agilidade para o cavalo castanho e disse-lhe:
-
Pronta para uma cavalgada? – quis atormentá-la. Na realidade era noutra
cavalgada que pensava. Desde que a vira nua ao luar que não pensava noutra
coisa, senão em…
Ela
fez uma cara de dúvida e disse:
- Não
me parece. Hoje quero ir com mais suavidade. – e nem percebeu o sentido duplo
que a frase continha.
Com um
sorriso irónico nos lábios carnudos ele respondeu-lhe.
- Como
quiser. Vamos então. Será sempre ao seu ritmo.
O
duplo sentido da frase não lhe escapou. O jogo de sedução era real, não era
fruto da sua imaginação.
Passo
a passo, os cavalos – habituados a andarem juntos- seguiram pela estrada de
terra. Isabel sentiu-se noutro mundo. O mundo que ela imaginara poder viver um
dia. Nem que fosse por momentos tinha que experimentar viver a liberdade que
tanto almejava e que lhe tiraram há cinco anos. Se a felicidade era algo
parecido com o que estava a viver, então sentia-se feliz. A única sombra que
pairava por ali era a da partida do conde, como lhe fora dito quando foi para o
Solar de Santa Maria. Isabel ficaria com Teresa e Leonor viria para o
continente algum tempo depois para se juntar à filha e, nessa altura o jovem
conde regressaria ao Brasil para administrar a fazenda dela. "