domingo, 29 de julho de 2018

A Cápsula do Tempo - Romance ( excerto)





Imagens retiradas da internet. 

(...)Lá estava a foto da cobra e do crocodilo. Ele e uns cinco homens seguravam uma jibóia morta, ao longo do seu comprimento e, na foto ao lado, o mesmo grupo pousava junto a um enorme crocodilo onde um homem fardado de verde caqui, assentava  uma metralhadora. Se fosse hoje era tido como um ato de barbárie, mas naquela época, anterior a 1975, era uma proeza. Soldado que era soldado - e homens com eles no sitio -, matava um daqueles bichos abundantes pelas selvas africanas, para mandar uma foto para as madrinhas de guerra, comprovando a sua bravura. 
Joana passava as folhas lentamente. Ali estava o seu Adérito com o alferes Torrinha e com o capitão Antunes, tisnados pelo sol de Angola, e com o peso da guerra nos ombros embora mostrassem um grande sorriso. Como a vida pode ser enganadora. A guerra transformara o seu homem num monstro.
Dois meses depois, de receber aquelas fotografias, chegava um aerograma a dizer que Adérito terminara a comissão em Angola e vinha de férias à metrópole. Quando soube a noticia já ele vinha no barco que o conduziria a Lisboa.
Sentia um frio na barriga só de pensar em ver aquele homem bonito e sorridente. Se o amor era aquilo, podia dizer que amava o seu homem. Decerto ele teria muitas madrinhas de guerra[1], mas a namorada era ela. Ela era a escolhida.
Hoje duvidava que ele a tivesse escolhido pelos melhores motivos. Dali a uma semana Adérito dera-lhe o primeiro desgosto.
O comboio estava atrasado quase uma hora, mas Adérito prometera telefonar para a venda dos Oliveiras a avisar que ia a caminho de casa, quando embarcasse no comboio e não o fizera. As duas famílias estavam na plataforma, ansiosos por verem chegar o bravo soldado que escapara aos “turras” e às malvadas minas que ceifavam vidas. Mas a espera não dera frutos. Adérito não viera no comboio. Desembarcaram três dos filhos da terra que estavam na sua companhia e foi com o coração apertado que viu Manuel do Freixo, aproximar-se.
Os olhos apaixonados do jovem soldado raso, olharam-na com um misto de amor e pena:
- Ele seguiu para o Porto. Tem lá uma madrinha de guerra que foi ver – disse-lhe Manuel.
Preferia ter sabido da sua morte. Talvez não lhe doesse tanto.
Manuel era apaixonado por Joana fazia anos, e foi com algum prazer que lhe deu a noticia que o seu namorado preferia outra. O recado – e o que ele tinha de subentendido – estava dado. Joana percebera perfeitamente que ele o fizera por despeito. Sentia que Manuel lhe estava a dizer que mais valia ter aceite o seu amor, porque ele, Manuel, nunca a trataria dessa forma. Adérito Simões era o soldado que apanhara um esquentamento mal pusera os pés em Luanda e se enrolara com quantas prostitutas por lá encontrou. Joana estava muito enganada quanto ao homem que escolhera para namorar.
 Joana suspirou. Como teria sido a sua vida se o marido não tivesse ido à guerra e não se entregasse à bebida?
Com o álbum aberto sobre as pernas envoltas numa manta, a memória recuou mais uns bons anos e recordou aquele ano em que decidiram casar. Nesse ano estava doente, sem que os médicos descobrissem o nome da maleita que a impedia de trabalhar por longos períodos. Casaram em 1975, oito meses depois da guerra terminar e quando Adérito já não corria perigo de ser mobilizado outra vez para alguma província das colonias portuguesas. A noite de núpcias passou-a no hospital com cólicas abdominais e o seu homem a festejar o casamento com os amigos. Joana tinha vinte e três anos e a esperança que todas as jovens alimentam ao longo da adolescência: casar e ser feliz ao lado do homem por quem se apaixonara.
Tudo foi tão diferente que ainda hoje lhe custa a aceitar que a vida é tão injusta com as pessoas. Quando voltou para casa, com o aviso que fizesse dieta de lacticínios, encontrou Adérito alcoolizado e a receção não foi a que esperava. Tomou-a à força e naquele instante, viu a romantização da sua primeira vez, tornar-se numa coisa dolorosa e traumatizante. Depois, nos dias, meses e anos que se seguiram, Joana passou o tempo a dar aulas, nas escolas primárias da região, e a tentar manter as terras de Adérito a produzir, com a colaboração do capataz.(...)

Caras(os) leitoras(es) aqui fica uma amostra de degustação do meu próximo livro a ser lançado lá para o fim do ano. Tinha previsto publicar no Verão, mas obrigações familiares, tem-me "roubado" tempo à escrita. 
Adianto que depois de muito pensar, vou publicar o ebook em português do Brasil e o livro físico em português de Portugal. Espero com isso alcançar mais leitores brasileiros que preferem ler em português brasileiro. 

Até ao próximo post. 
Espero reacções vossas ao excerto e ao tema do livro. 




[1] Jovens que se correspondiam por carta com os soldados que estavam na guerra do Ultramar, e que podiam tornar-se namoradas, amantes ou esposas.




2 comentários:

  1. Assunto muito interessante, que relata um tema vivido pelos jovens da idade doa meus pais. Ainda hoje os ouço falar nas madrinhas de guerra e nos casamentos arranjados desta forma.
    Parabéns Dra. Lídia!

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  2. Obrigado pelo seu comentário. Penso que este tema faz parte de muitos milhares de portugueses e, como convivi de perto com os traumas de guerra ( fisicos e mentais), achei por bem escrever sobre o assunto.

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